Breve diário de uma borboleta
1
Eu sou uma borboleta, convém começar com este facto. No entanto, não o era ontem à noite. Talvez Por coincidência, antes de adormecer terminei de ler um livro cujo protagonista acordara transformado numa criatura monstruosa, e esta manhã, também eu acordo transformada numa criatura monstruosa.
2
Tenho a ideia de que para a maioria das pessoas as borboletas são belas. Não posso concordar. Eu tenho um espelho, e temo-me a mim mesma se me olhar de perto. Em vez de uma boca, tenho uma espirotromba que é uma espécie de palhinha por onde sugo o nectar das flores. Tenho o corpo coberto de pêlos, e os meus olhos captam raios ultravioleta o que me deixa um bocado confusa e com dor de cabeça. Gosto das asas, tenho de admitir que são atraentes, Apesar de serem revestidas por um conjunto de escamas que parecem as telhas de um telhado. de resto, sinto-me uma mostrenga.
3
Gostava de ser uma lagarta. Sentia uma fome insaciável que me atraia às hortas mais vistosas. Comia para viver, vivia para comer; era uma rotina maravilhosa. As couves eram a minha comida favorita, não sei como conseguem ser tão deliciosas. Conseguia facilmente devorar uma sozinha, mas preferia partilha-las com o caracol Alfredo, com quem normalmente me encontrava para explorar os frescos, entre conversas animadas.
Seria uma vida perfeita se não fossem os ataques constantes dos pássaros, também eles esfomeados, que insistiam em caçar-nos. O Alfredo tinha a carapaça, e eu tinha o Alfredo que gentilmente a partilhava durante os ataques.
Certo dia, atingiu-me um cansaço grande, e pela primeira vez não quis comer. Apenas refugiar-me. Disse até já ao Alfredo, e fechei-me em mim mesma, sentindo-me protegida do mundo com a armadura que construira à minha volta, sem nunca sequer imaginar no que iria acontecer.
4
Não tenho noção do que aconteceu. Aconcheguei-me, terminei de ler um livro, e adormeci. É certo que algo aconteceu apesar de não ter percebido, pois acordei nestes preparos aborboletados que não esperava.
Comecei por sentir um calor sufocante e um aperto. Confusa, estiquei-me tentando libertar-me dessa sensação agoniante. Ouvi a armadura estalar, a luz do sol infiltrou-lhe as frestas, e num ápice, estava de volta ao mundo consciente. Bati as asas por instinto, sem saber ainda que as tinha. Apressei-me, atordoada, à horta para saciar a fome que voltara. Fiquei contente ao ver o Alfredo a petiscar uma alface, e depois nervosa com a reação dele ao dar por mim.
Pobre Alfredo, assustei-o. Com o susto, petrificou com a boca meia aberta soltando um pedaço de alface meia mastigada. Esperei o que me pareceu uma eternidade por alguma outra reação.
5
Regressou ao normal numa lentidão exasperante. Deduziu que eu tivesse sido caçada por um pássaro. Aparentemente a minha ausência fora longa apesar de ter sido apenas uma noite na minha percepção.
O Alfredo foi o primeiro espelho, descreveu-me com pormenor. Não querendo acreditar, e pensando que ele tivesse comido alguma alface com pesticida a mais, esvoacei até ao rio onde confirmei no reflexo as suas palavras. E assim, sem saber como, vi-me de facto metamorfada numa borboleta de asas esbranquiçadas.
Tive naquele momento uma crise existencial. “Quem sou eu? E como vim aqui parar?”, Mas depois notei o agradável aroma do rosmaninho. Aceitei-me, e dei uso à minha estranha espirotromba pela primeira vez. A flor do rosmaninho é agora a minha comida favorita, deixei as couves para o Alfredo que não se importou nada.
Durante a manhã, Ele esquecera-se completamente das alfaces, preferindo apreciar o meu esvoaçar de uma flor para a outra. Mais tarde, perguntou-me baixinho num tom sonhador: “qual é a sensação de voar?”
Sorrindo, convidei-o a subir para as minhas costas.
esvoaçamos em direção ao pôr do sol, parecendo por momentos que uma nova metamorfose acontecera: a de um caracol com asas de borboleta. Foi então que percebi, com o entusiasmo do Alfredo, que ser uma borboleta também tem os seus encantos.
Fim
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